quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O transplante de rosto

Durante a aula de hoje, me lembrei da história de Isabelle Dinoire que, no final de 2005, depois de ser "desfigurada" pelo ataque de um cachorro, recebeu o rosto de uma outra pessoa. Vale recuperar a história toda, desde discussões sobre a ética e a legalidade de um procedimento médico desse tipo, a rejeição ocorrida após a cirurgia, a relação entre rosto e identidade... Seguem alguns artigos publicados, na ocasião, no caderno Mais da Folha de S. Paulo.

COM O OUTRO NO CORPO
O ESPELHO PARTIDO
APROPRIAÇÃO DOS TRAÇOS FACIAIS DE OUTRA PESSOA ROMPE O SENTIDO DE IDENTIDADE E RELATIVIZA O NARCISISMO DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

"Um rosto extinto. Um grau de extinção por certo nunca antes atingido na espécie humana"(Michel Tournier)

MARIA RITA KEHL

O que acontece com o sentimento de identidade de uma pessoa que se depara, diante do espelho, com um rosto que não é seu? Como é possível manter a convicção razoavelmente estável que nos acompanha pela vida, a respeito do nosso ser -essa ficção indispensável- no caso de sofrermos uma alteração radical em nossa imagem?Perguntas como essas provocaram um intenso debate a respeito da ética médica depois do transplante de parte da face em uma mulher que teve o rosto desfigurado por seu cachorro em Amiens, na França.Deixo de lado os aspectos da discussão motivados pela rivalidade profissional, em que argumentos éticos podem mascarar a disputa por prestígio e glória entre equipes médicas da França e da Inglaterra. Interessa-me a relação subjetiva entre a identidade e o rosto. Essa relação é tão íntima que, dentre as várias possibilidades de mutilação física, consideramos hediondas as que destroem partes do rosto. Nesses casos, empregamos o termo desfiguração.Quando o rosto se torna irreconhecível, a figura humana se desfaz. A legislação britânica que condena o transplante de rosto em consideração à (previsível) crise subjetiva ante uma transformação radical dos traços da face desconsidera que, mais despersonalizante do que encontrar no espelho um rosto alheio, é não encontrar rosto nenhum.Ou não: talvez seja menos custoso para um acidentado suportar o luto pela perda da figura facial -e manter sob as ataduras a identificação imaginária com o rosto antigo- do que o estranhamento diante de um rosto outro.Ilusão necessáriaMas penso que vale a pena o trabalho de refazer essa identificação. O que chamamos, confusamente, de identidade não tem nada a ver com o ideal -sempre fracassado- de nos mantermos idênticos, seja a nós mesmos, seja à imagem ideal que pretendemos oferecer ao olhar do outro. A identidade é uma ilusão necessária, de unidade e continuidade do eu.Ocorre que o eu se constitui a partir da imagem corporal. Nosso sentimento de permanência e unidade se estabelece diante do espelho, a despeito de todas as mudanças que o corpo sofre ao longo da vida. A criança humana, em um determinado estágio de maturação, identifica-se com sua imagem no espelho. Nesse caso, um transplante (ainda que parcial) que altera tanto os traços fenotípicos quanto as marcas da história de vida inscritas na face destruiria para sempre o sentimento de identidade do transplantado?Talvez não. Ocorre que o poder do espelho -esse de vidro e aço pendurado na parede- não é tão absoluto: o espelho que importa, para o humano, é o olhar de um outro humano. A cultura contemporânea do narcisismo, ao remeter as pessoas continuamente a buscar o testemunho do espelho, não considera que o espelho do humano é, antes de mais nada, o olhar do semelhante.É o reconhecimento do outro que nos confirma que existimos e que somos (mais ou menos) os mesmos ao longo da vida, na medida em que as pessoas próximas continuam a nos devolver nossa "identidade" -aspas necessárias.Sagrado e insubstituívelO rosto é a sede do olhar que reconhece e busca reconhecimento. O rosto é sagrado, disse e escreveu insistentemente Emmanuel Lévinas. Por que sagrado? O que há de insubstituível em um rosto, que faz dele o centro da nossa humanidade e a sede imaginária do eu? É que o rosto não se reduz à dimensão da imagem: ele é a própria presentificação de um ser humano, em sua singularidade irrecusável. Além disso, dentre todas as partes do corpo, o rosto é a que faz apelo ao outro. A que se comunica, expressa amor ou ódio e, acima de tudo, demanda amor.A literatura pode nos ajudar a amenizar o drama da paciente francesa. O Robinson Crusoé do livro "Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico" (Bertrand Brasil), de Michel Tournier, perde a noção de sua identidade e enlouquece, na falta do olhar de um semelhante que lhe confirme que ele é um ser humano. No início do romance o náufrago solitário tenta fazer da natureza seu espelho. Faz do estranho, familiar, trabalhando para "civilizar" a ilha e representando diante de si mesmo o papel de senhor sem escravos, mestre sem discípulos.Mas depois de algum tempo o isolamento degrada sua humanidade. O Robinson de Tournier passa a se identificar com os animais, falar com os macacos e rolar na lama com os porcos. "Narciso de um tipo novo, abismado de tristeza, com recrudescido nojo de si (...), compreendeu que o rosto é essa parte da carne modelada e remodelada, aquecida e permanentemente animada pela presença dos nossos semelhantes."Na versão de Tournier, a entrada em cena do selvagem Sexta-Feira vem salvar Robinson Crusoé não da solidão, mas da loucura.A paciente francesa, que agradeceu aos médicos a recomposição de uma face humana, ainda que não seja a "sua", vai agora depender de um esforço de tolerância e generosidade por parte dos que lhe são próximos.Parentes e amigos terão que superar o desconforto de olhar para ela e não encontrar a mesma de antes. Diante de um rosto outro, deverão ainda assim confirmar que ela continua sendo ela. E amar a mulher estranha a si mesma que renasceu daquela operação.

Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de, entre outros livros, "Ressentimento" (Casa do Psicólogo).


TRANSPLANTE DE SENTIDO
A CIRURGIA SE ASSEMELHA A UMA RECONEXÃO SIMBÓLICA COM O MUNDO, MAS PODE TRAZER SEQÜELAS GRAVES PARA A PERSONALIDADE, COMO NÃO SER MAIS RECONHECIDO

DAVID LE BRETON

O transplante realizado na semana passada, em Amiens, pela equipe do professor Dubenard coloca em destaque numerosas questões antropológicas. Para as sociedades ocidentais, o rosto cristaliza o sentimento de identidade. De forma vivaz e misteriosa, ele traduz o absoluto de uma diferença individual concomitante à afiliação a um grupo.O rosto faz sentido imediatamente; nenhum outro espaço do corpo é mais apropriado para determinar a singularidade e sinalizá-la como cerne do nexo social. Por ele o homem é reconhecido, identificado, amado. Como o sexo, é a mais forte fonte do sentimento de identidade.Um homem que se recusa a realizar uma ação que considera reprovável afirma que não o fará porque "não poderia se olhar no rosto" caso agisse de outra forma. Mas, sem que tenha cometido nenhuma falta, um homem desfigurado se vê confinado a essa impossibilidade. Um ferimento que deixa uma cicatriz profunda em um braço, perna ou no ventre não coloca em questão de maneira tão virulenta o sentimento de identidade, especialmente se a ferida não vier a acarretar nenhuma seqüela funcional.Toda alteração no rosto marca a personalidade do indivíduo em sua forma mais profunda. É por intermédio do rosto que se pode desfrutar do significado e até mesmo do valor da existência. A dolorosa experiência da desfiguração faz evocar o fato de que o homem não vive apenas como corpo físico. O homem habita um corpo imaginário, ao qual atribui significados e valores, com os quais integra o mundo a si mesmo e se integra como pessoa ao mundo.A desfiguração introduz uma brutal ruptura no cerne da aliança, já em si razoavelmente problemática, mas ainda assim passível de concretização, entre o corpo real e a imagem que o indivíduo faz dele.Suspensão do euDe maneira provisória ou permanente, o homem desfigurado vive a suspensão do eu, a privação simbólica de seu ser que apenas uma mobilização completa da vontade torna possível reconstituir. Ele convive com o sentimento de que sua identidade está desfeita, e se esvai a cada olhar, seu mesmo ou de outros.Inúmeras pessoas se sentem excluídas de si mesmas e do mundo, em luto por seu próprio ser, ainda que continuem a existir. A desfiguração constitui uma condenação à morte simbólica.A capacidade de superar esse revés e de recuperar plenamente o prazer de viver que se sentia anteriormente está vinculada à experiência pessoal do protagonista, à sua situação social e cultural, à sua idade, às qualidades das pessoas que o cercam. Mas há casos em que ele sofre o desmantelamento de seu ser, a erradicação brutal de tudo aquilo que ele era antes, e cuja perda lhe parece definitiva. A desfiguração dispõe sobre o rosto uma máscara ou ricto como que provocado por um banho de ácido. Não ter mais figura humana pode ser considerado uma metáfora para a morte.A perda do rosto, em termos psicológicos e sociais, equivale a perder a posição que a vítima ocupa no mundo. "Fazer face" aos problemas passa a depender dos recursos íntimos do protagonista. A desfiguração salta aos olhos de todos, atrai o olhar curioso dos passantes e causa embaraço aos interlocutores que fazem com ela o seu primeiro contato.Sob esse contexto tão pesado em termos humanos, um transplante de rosto é acima de tudo uma cirurgia de sentido e tem por objetivo restaurar o prazer de viver de um paciente ao qual foi amputada parte essencial daquilo que fundamenta sua relação com o mundo. A operação se assemelha ao restabelecimento simbólico de uma conexão com o mundo.Mas transplantar um rosto consiste acima de tudo em transplantar uma identidade, e a operação tem conotações sísmicas para as bases da personalidade. Receber o rosto de outro é como se expor a não mais ser reconhecido, a não mais poder se olhar no espelho sem perceber outra pessoa colada ao próprio rosto.É certo que a cirurgia não representa a duplicação do rosto do doador da face transplantada, porque o rosto será em parte adaptado à estrutura óssea do receptor, mas este não recuperará o rosto que tinha nem será poupado do choque de alteridade de que essa mudança se impregna. O rosto que passará a ostentar não será o mesmo que antes exibia. O risco de se sentir "possuído", "despersonalizado", é tangível para as personalidades frágeis e que não tenham refletido o suficiente sobre a questão antes do procedimento.Presente envenenadoUm transplante de órgãos ou tecidos nem sempre é uma experiência tranqüila para o paciente: muitas vezes o receptor de um transplante considera o órgão recebido como um presente envenenado. Uma intervenção desse tipo perturba o sentimento de identidade do paciente. Para começar porque o torna devedor da pessoa da qual se origina o órgão. Nas sociedades humanas, presentear envolve uma reciprocidade que garante a dignidade igual dos participantes na transação.Receber implica retribuir, de uma ou de outra forma. Os transplantes de órgãos e tecidos sublinham a questão do sacrifício, do preço simbólico a ser pago pela restauração de uma saúde mais propícia, no caso a recuperação de um rosto menos danificado, mais aceitável socialmente e, se possível, parecido com aquele que foi amputado.Se viver desfigurado é um sofrimento sem fim que dilacera o eu, é compreensível que o paciente escolha um sentido, mesmo que haja o risco de que o preço a pagar seja muito elevado. Além das severas restrições que a medicação diária contra a rejeição imporá, é preciso compreender que o rosto restaurado não será igual ao rosto perdido, e é preciso manter a lucidez quanto às questões de identidade, a ambivalência possível diante de um rosto marcado pela ambigüidade.

David le Breton é antropólogo e professor na Universidade Marc Bloch, em Estrasburgo (França). É autor de "Adeus ao Corpo" (Papirus) e "Des Visages" (Rostos, ed. Métailié), entre outros livros. A íntegra deste texto foi publicada no "Libération".Tradução de Paulo Migliacci.

A FACE NOVA DA ÉTICA
OPERAÇÃO DE TROCA DE ROSTO SINTETIZA UMA ERA QUE PASSA POR BRUSCAS MUDANÇAS DOS PADRÕES DE RECONHECIMENTO E IDENTIDADE

RENATO JANINE RIBEIRO
Uma mulher tem seu rosto mais que desfigurado, praticamente destruído. Tradicionalmente, um cirurgião plástico iria recompô-lo. Mas, sem nariz, sem orelhas, se torna possível esculpir qualquer face. Sim, o médico poderia tentar reconstituir o original, como os arquitetos europeus fizeram com as cidades arrasadas durante a Segunda Guerra Mundial, erigindo uma Frankfurt, uma Roterdã "fakes". Qual a diferença então entre refazer o que sumiu e desenhar algo novo? E se, como agora aconteceu na França, o rosto novo da mulher for o rosto bem preservado de alguém que morreu?Adianto que não vejo grandes problemas éticos nessa história. Fez-se mal a alguém, com a viva herdando o rosto da morta? Temos uma tradição já bem consolidada de transplantes. Transplantar um coração, quase 40 anos atrás, tornou célebre o cirurgião sul-africano Christian Barnard e causou um choque, tal o simbolismo ligado àquele órgão. Depois disso, transplantou-se quase de tudo. Mas transferir um rosto tem algumas conotações distintas, que vale a pena salientar.Outra história pessoalOs transplantes que vemos com bons olhos são aqueles necessários, os que atendem a demandas de saúde. Sem coração, sem rim, sem medula, morre-se. Mas o rosto, não. Embora esse caso de cirurgia plástica não fosse estético, mas de plena necessidade, fica a idéia de algo exagerado. Não se podia, apenas, corrigir? Exagero, essa é a palavra.O rosto porta nossa identidade como poucas outras coisas. José Dirceu, perseguido político, passou por uma operação, que modificou seu nariz. A voz dele é inconfundível, mas a face a desmentia. O episódio francês nos choca, porque mexe no que é mais fundo na identidade de alguém.Se a moda pega, isso propicia que uma pessoa tome o lugar de outra. Lembra o filme "O Segundo Rosto", de John Frankenheimer. Há o perigo de que criminosos se beneficiem disso. Mas, ao mesmo tempo, as técnicas convencionais de cirurgia já permitem um mascaramento bastante eficaz. Então, qual a novidade nisso?A novidade está em assumir uma identidade alheia, pronta. Vêm fantasias à mente: e se um familiar da morta encontra a sua sucessora? Ou mesmo, como as pessoas próximas da mulher viva vão sentir o fato de que ela assumiu um rosto que tinha dona, história, documentos? As fronteiras se perdem, assim, entre o habitual e o assustado.Mas, mesmo assim, há problema ético nisso? Melhor dizendo, o mero fato de uma pessoa assumir as feições de outra é, por si só, problemático eticamente? Será condenável, concordo, se ela roubar o rosto de outra; se usar desse recurso para fugir à lei; mas notem que nesses casos o que é condenável não é ter um novo-velho rosto, e sim aquilo para que se mudou o rosto. Em outras palavras, o que torna uma ação condenável não é a mudança de identidade aparente, que não passa de um meio; é o fim para o qual essa modificação está sendo utilizada.Porque mudar o rosto, apenas, não causa mal a outrem. Pode causar choque, mas não mal. Ora, um dos aspectos mais significativos de nosso tempo é esse: muita coisa nos choca, sem que necessariamente seja má.Piercing, tatuagem, roupas esquisitas, isso causa mal-estar a muita gente, mas não lhes causa mal. Mal-estar não é mal. Mas nossa reação automática, assustados com um filho que usa brinco, com uma filha que se tatua, é entender que nosso mal-estar é um mal praticado pelo outro. Não há, porém, razão nenhuma para adotar essa postura.Crise de um modeloAs identidades estão mudando. Um século atrás, a média de idade girava em torno dos 30 ou 35 anos. Dobrou, de lá para cá. Isso significa que passamos a ter tempo de sobra. No entanto não tiramos todas as conseqüências disso. Somente a discussão da contribuição previdenciária trata dessa questão e trata mal, apenas avaliando custos e ganhos.Na verdade, o que se desfaz é um modelo de vida, pelo qual se casava ao redor dos 20 anos, tinha-se filhos, dos quais se cuidava, trabalhava-se, chegava-se à aposentadoria e, após mais alguns anos, se morria.Esse modelo não funciona mais. Depois da aposentadoria, é possível viver 40 anos. Aí vem a grita: aposentemos mais tarde. Mas não é essa a questão, e sim que, depois de criar os filhos, de curtir os netos, ainda há vida inteligente. É possível viver muito tempo (o que dizem os calculadores da Previdência Social), mas com qualidade (o que pouco se discute). Isso significa que podemos mudar de vida, várias vezes.Casamentos se desfazem, que duraram 20 ou 30 anos: valeram mais tempo do que muito matrimônio de 1900, em que o marido ou a mulher morriam antes dos 40 anos de idade. Não é um fracasso um casamento que foi terno enquanto durou.Empregos desaparecem, o que nos assusta, mas profissões surgem também, e com elas novas oportunidades. Uma pessoa pode ter várias identidades profissionais ao longo da vida; pode ter algumas parcerias amorosas duradouras e preciosas; pode até, no quadro da União Européia (e espero, um dia, no Mercosul), mudar de nacionalidade. Serei italiano por 20 anos, inglês por 15, alemão nos dez seguintes, espanhol até o fim da vida.Mudar de rosto não é mudar de identidade? Depois da operação francesa, ouvi receios, mas quase todos eles baseados na idéia do que o outro acharia da pessoa com nova face. E ela mesma, o que achará? O que sentirá, ao ver-se no espelho, não com um rosto reconstituído, mas com feições prontas, completas, que ela sabe terem tido uma história? Este poderia ser o começo de um conto, que pelo menos aqui não escreverei.Mas é um sinal a mais de um mundo que nos coloca oportunidades novas, algumas delas assustadoras, das quais porém não nos desvencilhamos condenando-as em nome de uma ética apressada. A ética é importante demais para se confundir com o medo diante do novo.

Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia da USP e diretor de avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, do MEC).

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