quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Esboçando um campo de discussões

Esboçando um campo de discussões





"Fiel à concepção de história-problema da Escola dos Anais, minha primeira dificuldade consistiu em definir uma problemática que me permitisse apreender o indivíduo São Luis em interação com a sociedade do século XIII, evitando o que o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de a "ilusão biográfica", que pretende que se considere a vida de um grande homem como alguém com um destino já traçado, excluindo as eventualidades da vida. Eu, ao contrário, limitei-me a mostrar as hesitações, as decisões e os momentos cruciais da vida de São Luís, a partir da sua infância de rei. Porque se o homem constrói sua vida, ele também é construído por ela. Foram as fontes, na verdade, que representaram as principais dificuldades de meu trabalho de historiador, e isso por causa de sua própria natureza. De fato, uma grande parte dos documentos disponíveis sobre São Luís são de caráter hagiográfico ou normativo. Através de São Luís pinta-se mais o retrato do rei que ele deveria ter sido do que o que foi realmente, como em Les Miroirs des Princes, textos que nos informam mais sobre a concepção do soberano ideal do que sobre a verdadeira personalidade dos reis. As qualidades e os fatos atribuídos a São Luis - freqüentar os pobres e os leprosos, oferecer numerosas esmolas, etc. - são assim atribuídos a outros reis. No entanto, eu tive algumas vezes a impressão de cair em detalhes suficientemente concretos de sua vida cotidiana para dizer: é ele finalmente. Mas mesmo aí eu tive surpresas desagradáveis... E foi então que eu me fiz, de forma provocante, a seguinte pergunta: Será que São Luis existiu? É claro que não se trata de dizer que São Luís teria sido apenas fruto das fantasias da história e dos historiadores, mas de se perguntar se seria possível encontrar o verdadeiro São Luis".





Apresentação


No último capítulo de O Pensamento Selvagem, diz Lévi-Strauss que a história biográfica e anedótica é a menos explicativa, mas é a mais rica sob o ponto de vista da informação, já que ela considera os indivíduos na sua particularidade e que detalha, para cada um deles, os matizes do caráter, as sinuosidades de seus motivos, as fases de suas deliberações.Apesar dos impasses, entre ganhar informação e perder em compreensão, ou inversamente, conforme o nível em que, no caso, o historiador se coloca.
No mesmo livro, quando o autor refere-se ao lugar do nome e que estaria abaixo na ordem da classificação e acima, no da identificação, a razão da diferença não é afirmada pela sua natureza lingüística, mas na maneira pela qual cada cultura recorta o real e nos limites variáveis que marcam, em função dos problemas que apresenta, os limites para o empreendimento classificatório.
Lembremos que Lévi-Strauss (que, aliás, escrevera sobre autobiografias indígenas, sobre o método e os resultados de Sun Chief, na década de 40 e foi quem prefaciou o Soleil Hopi , de Don Talayesva, aos leitores franceses em 1959) já aproximou a história da etnografia, no que teriam em comum a descrição da particularidade.
Há um nexo bem conhecido entre a história e a biografia e, particularmente, o reconhecimento da importância (contestada e afirmada) da narrativa, do acontecimento e da singularidade na historiografia.O que torna mais ainda apropriado o que diz Le Goff na epígrafe citada acima. Particularmente, pela que ela nos sugere das tensões entre Antropologia, e Ciências Sociais, com a perspectiva biográfica.
Para muitas reflexões recentes a perspectiva biográfica não precisa, necessariamente, explicar-se pelo individualismo. Aliás, na maioria das vezes o que a leitura de muitas biografias revela são redes, contextos, relações. Nem se fundamenta a perspectiva biográfica em uma só maneira de conceber a história, a de uma história linear da vida, ou com sentido para a vida. Há também cortes e temporalidades diversas; há trajetos em posições no campo social, há escolhas desordenadas e percursos imprevisíveis. Diríamos mesmo que um certo estilo biográfico pode inclusive ser praticado para criar indivíduos. O que só pode ser revelado por uma análise dos estilos biográficos.
Assim, sugerimos a leitura crítica de biografias para constituir o campo de questões de uma perspectiva biográfica, que enfrente a complexidade e as dificuldades das relações entre temporalidades distintas, narrativas, memória, história, oralidade e escritura, escrita e alteridade. Também, tendo em vista muitos dos impasses no que se refere aos conceitos e análise de totalidades (sociedade, cultura, estrutura social, comunidade, pessoa) e as exigências de tradução do que seriam as (ou , as suas) partes, sugerimos aproximar algumas discussões sobre diferença e rosto. Isto é, a perspectiva biográfica e o rosto como especificações ou inflexões significativas, ao social ou etnográfico, ao corpo.

Em termos mais gerais é este o convite para a discussão, abrindo-se , inclusive, para reflexões que testem os efeitos de autobiografias, biografias, trajetórias, narrativas de vida na relação entre etnografia, história e linguagem.

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