sábado, 27 de outubro de 2007

Franceses discutem se cabeça maori é parte do corpo ou arte - 27/10/2007 - UOL Mídia Global

27/10/2007
Franceses discutem se cabeça maori é parte do corpo ou arte

Elaine Sciolino
Em Paris

Desde 1875, a cabeça mumificada e tatuada de um guerreiro maori faz parte da coleção permanente do Museu de História Natural de Rouen, na Normandia.

No entanto, quando o prefeito de Rouen tentou recentemente devolvê-la para a Nova Zelândia, como ato de "reparação" pelo tráfico de restos humanos da era colonial, o Ministério da Cultura interferiu para impedi-lo.

O ministério alega que a cabeça é um trabalho de arte pertencente à França e que sua devolução poderia gerar um precedente infeliz para uma gama enorme de coleções de museus nacionais -desde múmias egípcias no Louvre até tesouros asiáticos no Museu Guimet e artefatos africanos e oceânicos no Museu de Quai Branly.


Guerreiros maori fazem apresentação de uma tradicional dança de guerra em Valencia

"O prefeito de Rouen tomou uma decisão sem consultar ninguém, e sua decisão vai contra a lei", disse Olivier Hernard, assessor jurídico do Ministério da Cultura, na quinta-feira (25/10), referindo-se a uma lei de 2002 que afirma que obras de arte são "inalienáveis".

"Há outras cabeças maori, há múmias, há relíquias religiosas na França", disse ele. "Se não respeitarmos a lei hoje, amanhã outros museus ou autoridades podem decidir devolvê-las também."

As autoridades em Rouen insistem que a cabeça maori é uma parte do corpo, não uma obra de arte, e que, de acordo com a lei de bioética da França, deve ser devolvida ao seu local de origem.

"Esse objeto reflete o tráfico bárbaro de partes do corpo e a crença de que outra raça é inferior a nossa", disse Catherine Morin-Desailly, vice-prefeita de Rouen para cultura e senadora, que propôs a devolução da cabeça. "Pertence à herança da humanidade e não deve ficar armazenada em algum museu."

Os maoris tradicionalmente preservavam as cabeças tatuadas de guerreiros mortos em batalha para manter sua memória viva. O comércio de partes do corpo prosperou no século 19, na medida em que o contato com estrangeiros aumentou. Os europeus colecionavam restos maori. Os guerreiros tatuados maori corriam perigo de serem mortos para que suas cabeças fossem vendidas. Alguns escravos maori foram tatuados à força, depois decapitados.

Desde 1992, o museu nacional da Nova Zelândia Te Papa Tongarewa, em Wellington, fez pedidos para que os restos maori fossem devolvidos do mundo todo, como parte de um projeto para restaurar a dignidade dos mortos. O museu tentaria identificar e doar os restos às tribos para permitir enterros adequados.

Mais de duas dúzias de instituições responderam, mas a iniciativa de Rouen seria a primeira da França.

No mês passado, o Museu Field de história natural em Chicago devolveu uma cabeça maori e outros ossos para a Nova Zelândia. O Museu Americano de História Natural em Nova York tem mais de 30 cabeças maori.

Há poucos dias, Christine Albanel, ministra da cultura, conseguiu uma ordem judicial para deter o processo de devolução da cabeça tatuada. Pedindo um processo para garantir a integridade da herança nacional, ela advertiu que pode haver "fortes repercussões" para as outras coleções da França.

Ela também criou um plano tipicamente francês que certamente adiaria qualquer decisão: um debate acadêmico no próximo ano, organizado pelo Museu de Quai Branly e um estudo dos "problemas éticos especiais" de restos humanos em museus públicos.

Stephane Martin, diretor do Quai Branly, concordou com o ministério que a cabeça deveria ficar na França.

"Do meu ponto de vista, são artefatos culturais que tinham uma função na sociedade", disse ele. "Enviá-los de volta para a Nova Zelândia e destruí-los enterrando-os é uma forma de apagar uma página da história."

Martin recusou o pedido da Nova Zelândia para que o Museu de Quai Branly enviasse de volta as quatro cabeças maori de sua coleção. "Estão guardadas em uma área muito especial, e absolutamente não serão colocadas para exibição pública", disse ele. O acesso é restrito a alguns especialistas, disse ele, acrescentando que não sabia o valor das cabeças.

A questão da cabeça maori de Rouen surgiu no início do ano, quando o museu reabriu após uma reforma de 10 anos. A cabeça faz parte da coleção do museu desde 1875, mas não houve registro de sua proveniência nem está listada no inventário oficial.

Os funcionários decidiram não exibir a cabeça e concluíram que sua mera posse não preenchia o espírito do novo museu. Como o museu é da cidade, o prefeito acreditou que tinha autoridade para devolver a cabeça. O museu emitiu um desenho da cabeça, mas proibiu que se tirassem fotografias.

"Este é um gesto ético, baseado no respeito às culturas mundiais e na dignidade que todo ser humano merece", disse o prefeito Pierre Albertini, advogado e membro do parlamento, em seu blog na semana passada.

Na terça-feira, uma delegação de autoridades da Nova Zelândia, incluindo um chefe tribal maori, visitou Rouen para uma cerimônia simbólica de transferência. Albertini e a embaixadora da Nova Zelândia na França, Sarah Dennis, assinaram um documento concordando com a devolução -se o governo francês aprovar.

"Nós, na Nova Zelândia temos uma política antiga de repatriar restos humanos maori sempre que possível", disse Dennis. "Respondemos ao gesto muito respeitoso e delicado de Rouen com apreço".

Morin-Desailly, a vice-prefeita, cita um precedente importante na França em relação ao retorno de restos humanos: os de Saartjie Baartman, a "Vênus Hottentot", como foi pejorativamente rotulada em seu tempo. Uma escrava de fazenda nascida em 1789, foi vendida a um cirurgião da marinha britânica e apresentada ao público em Londres e depois em Paris como aberração, por causa de suas nádegas e genitália exageradas.

Depois que morreu, seus restos foram exibidos no extinto Museu do Homem até 1976, e depois guardados. Em 2002, após anos resistindo, a França enviou seus restos para sua casa na África do Sul.

Tradução: Deborah Weinberg

Visite o site do The New York Times

2 comentários:

Morgana das Brumas disse...

Diante disso, eu confirmo de alguma maneira, um certo mal-estar, não diante do museu, visto que a preservação nos põe em contato com quadros, esculturas, etc...com artes,das mais diversas, através dos séculos, não é essa a questão. Mas, me inquieto diante desse "congelamento da cultura do outro" ... ao ponto de um país ter mais elementos da cultura de um outro do que este mesmo...
Etnocentrismos em nome da arte?
Aqui em Paris, dia desses estava conversando com um amigo e pensávamos, se tivesse sido possível talvez as pirâmides do Egito estivessem aqui... e provavelmente milhares de turistas estariam "na cidade luz", atravessando as catracas, com seus bilhetes de acesso para vê-las...

Skywalker disse...

Na verdade isso acontecia assim lá no Egito mesmo, com as pessoas todas se amontoando para entrar nas pirâmides e nas outras tumbas do Vale dos Reis. Ai o governo resolveu fechar o circo, porque o povo, quando entrava nas sepulturas, deixava suas marcas nas paredes, junto ou sobre as pinturas e os hieróglifos. Além disso, era tanta gente apinhada querendo ver aquilo que as estruturas das edificações ficavam comprometidas.