quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Os estudos do discurso e nossas heranças:Bakhtin, Pêcheux e

Os estudos do discurso e nossas heranças:Bakhtin, Pêcheux e
Foucault.
Vanice Maria Oliveira Sargentini1


1Centro de Ciências Humanas – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Caixa Postal 676 – 13.565-905 – São Carlos – SP – Brasil

Abstract. On the current scene of Discourse Analysis researches presentation we
observe the frequent presence of M. Pêcheux’s, M. Foucault’s and M. Bakthin’s
names as a reason for the theorical basis of the study subject sustentation. In this
paper we intend to discuss whether the convocations of those names is enough to
situate a manner of research or whether it –the convocation– only acts like “signs
of dull recognition, theorical fetish” (Pêcheux, 1983). Defending an
unquestionable prominence of such authors’ books, we are going to present
points of alliance and confrontation located in the intersection of their thought,
considering that the evocation of their names supports important reflections in the
studies of discourse. On the other hand, it does not seem sufficient to characterize
a unique position of work.

Keywords. Discourse Analysis; epistemology; theory; linguistics.

Resumo. No quadro atual de pesquisas na área de Análise do Discurso observase
a freqüente aparição dos nomes de Pêcheux, Foucault e Bakhtin como
justificativa do construto teórico de sustentação do objeto de estudo. Neste artigo
pretendemos discutir se o chamamento de tais nomes é localização suficiente de
um modo de pesquisa ou se atua apenas como “signos de reconhecimento opacos,
fetiches teóricos” (Pêcheux, 1990). Defendendo a indiscutível relevância das
obras desses autores, apresentaremos pontos de aliança e confronto presentes na
intersecção do pensamento desses estudiosos, considerando que a evocação de
tais nomes, se por um lado sustenta reflexões nos estudos do discurso, por outro
não se mostra suficiente para caracterizar uma posição única de trabalho.
Palavras-chave. Análise do discurso; epistemologia; teoria lingüística.


1. Introdução

No quadro atual de apresentação de pesquisas na área de Análise do Discurso,
observa-se em trabalhos de pesquisadores que se apóiam no conceito de discurso, a
freqüente aparição dos nomes de M. Pêcheux, M. Foucault e M. Bakhtin como justificativa
do construto teórico de sustentação da pesquisa a ser desenvolvida. A título de breve
exemplificação e evitando referências, recortei de algumas publicações ou projetos de
pesquisa, fragmentos que exemplificam essa afirmação:
“ (...) Tendo como base teórica os estudos sobre a Análise do Discurso na ótica de
Bakhtin, Foucault e Pêcheux, busca-se detectar as regularidades discursivas, os
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recursos de linguagem, bem como os sentidos que se encontram camuflados nas
imagens e nos discursos midiáticos.(...)
“ (...)pretende-se realizar reflexões pautando-se em teorias que reportam às
condições e produção do discurso – na perspectiva de Michel Pêcheux -, aos
procedimentos de controle do discurso – sob a ótica de Michel Foucault, ao conceito
de sujeito e ideologia trabalhados por inúmeros autores”.
“ (...)Tomo como referencial teórico básico a Escola francesa da Análise do
Discurso (AD) nas perspectivas apontadas por Foucault (1969) e Pêcheux (1988 e
1991) e os pressupostos teóricos da Escola Lingüística Russa apresentados por
Bakhtin e Vygotsky, fechando assim, as três regiões em que está inserida a AD –
psicanálise, lingüística e marxismo. (...)”
São exemplos de trabalhos de pesquisa que aqui recupero não para questionar o
valor ou considerar que não seja possível trabalhar nessa confluência. Meu interesse é
apontar uma reflexão que nos leve a considerar a heterogeneidade do pensamento desses
estudiosos comumente citados em estudos do discurso. Objetivo discutir que há pontos de
contato e de divergência entre esses autores, e que é interessante que esses sejam pontuados
para que se exponha essa ausência de homogeneidade e identidade.
Assim, o tema, ora proposto aos participantes da mesa-redondai, põe em questão se
o chamamento de tais nomes é localização suficiente de um modo de pesquisa ou se atua
apenas como “signos de reconhecimento opacos, fetiches teóricos”, como diz Pêcheux ao
referir-se sobre a formulação de sua pesquisa:
“A evocação de alguns nomes próprios (Saussure, Wittgenstein, Althusser,
Foucault. Lacan...) ou a menção a campos do real (a história, a língua, o
inconsciente...) não são suficientes para caracterizar uma posição de trabalho...
Não serei eu obrigado a começar por uma série de ‘chamadas’ incidindo sobre
pontos de definição que nada prova que não vão funcionar senão como signos
opacos, fetiches teóricos?”(Pêcheux: 1990a, p.18)
Proponho-me, então, neste artigo a apresentar um resgate teórico do contexto de
construção de alguns conceitos propostos por M.Bakhtin, M. Pêcheux e M. Foucault, bem
como busco apontar a que direções levam-nos essas heranças.

2. Nossas heranças
Para pensar nas questões sobre o discurso, que se trata de uma unidade tão pouco
estável, torna-se importante resgatar o contexto estrutural e os conflitos dele advindos que
estão na base deste desejo de partida e distanciamento da vertente estruturalista.
É difícil, por vezes, iniciar tal reflexão por este ponto, pois é possível sofrer pelo
menos duas críticas: primeira aquela vinda dos discursos que repeliram o estruturalismo
(particularmente no Brasil, a teoria estruturalista relaciona-se com um discurso de
alienação, de defesa de um certo estado de poder, de valorização excessiva da ciência em
detrimento dos valores sociais) e que, portanto, consideram que falar em discurso em tudo
se distancia do modelo estrutural (crítica com a qual concordo, mas prefiro manter a
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posição de que o estruturalismo permitiu pensar e expor os modelos seguintes de reflexão
sobre a linguagem); a segunda seria aquela que considera que iniciar retomando o
estruturalismo é observar o desenrolar dos estudos lingüísticos de modo a traçá-lo a partir
de uma perspectiva diacrônica (também aceito a crítica, mas justifico-me, indicando que, já
de início, desrespeito a ordem diacrônica, ao discutir em um mesmo momento Bakhtin,
Foucault e Pêcheux). Mesmo correndo tais riscos, iniciarei esta reflexão apoiada no
historiador F. Dosse (1993), na analista de discurso Denise Maldidier(1990) e nas
rememorações presentes nos diálogos entre Jacques Derrida e Elisabeth Roudinesco (2004).
Trata-se de uma história (bonita e grave, se isso é possível) gestada e produzida por
uma geração de pensadores franceses (legitimados pelo saber produzido na Sorbonne), que
em sua maioria interferiram no que viram quando viveram. F. Dosse (1993) atribui esse
êxito, que o estruturalismo conheceu na França das décadas de 50 e 60, graças ao seu
método rigoroso e também devido ao fato deste pensamento ser qualificado como o tempo
forte da consciência crítica. Em seu nascedouro, o paradigma estrutural representava um
poder de contestação e de contracultura, abrindo berço seguro e inovador para a
antropologia, psicanálise e lingüística, essa vista como ciência-piloto a guiar pelo conceito
de estrutura as outras ciências. Tratava-se de um movimento moderno se comparado à
velha metafísica ocidental. Deve-se aqui lembrar o nome de Lévi-Strauss, resgatando seu
encantamento com a teoria dos sistemas, sua aproximação de Jakobson e da lingüística.
Porém, “O que se criticaria ao Sr Lévi-Strauss é o fato de apreender na sociedade mais as
regras do que os comportamentos.” (Dosse, 1993, p.46).
O estruturalismo sofre seus primeiros abalos com os eventos de maio de 68 e golpe
final no início dos anos 80. Segundo Dosse (1993: 14) “um destino funesto golpeou o
estruturalismo no início dos anos 80. A maior parte dos heróis franceses dessa gesta épica,
de fulgurante irradiação internacional desapareceu num mesmo sopro da cena dos vivos”.
Saem de cena Roland Barthes (morre em 1980), Louis Althusser (internado em uma clínica
por seu ato contra a mulher, morre em 1990), Jacques Lacan (extingue-se afásico em 1981),
Michel Foucault (morre em 1984). Dentre esses pensadores franceses, encontra-se também
M.Pêcheux (com mesmo fim trágico em 1983). Em comum, considero que estes estudiosos
partiram do estruturalismo para opor-se a ele.
“Admite-se que o estruturalismo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar,
não apenas da etnologia mas de uma série de outras ciências e até mesmo da história,
o conceito de acontecimento.Eu não vejo quem pode ser mais anti estruturalista que
eu” (Foucault, 1996, p.5)
Porém, para Dosse (1993), há em Foucault uma fase estruturalista, marcada pela
obra As palavras e as coisas, de modo que não é possível atribuir uma única posição ao
autor sem considerar o avanço de suas pesquisasii. M. Pêcheux, em seus estudos, pauta-se
também em oposições aos princípios estruturais:
“A ruptura saussuriana foi suficiente para permitir a constituição da fonologia, da
morfologia e da sintaxe, mas ela não pode impedir um retorno do empirismo em
semântica” (Haroche, Henry, Pêchex, 1971).
Enfim, E. Roudinesco, avaliando esse tempo de grandes pensadores ensina-nos:
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“Hoje em dia é de bom tom rejeitar os pensadores dos anos 70 e exigir daqueles que
o invocam um ‘dever de inventário’ ou, pior ainda, um ‘arrependimento’. As obras
daquela época, marcadas pela conjuntura tão particular do “estruturalismo”, são
criticadas ora pela valorização excessiva do espírito de revolta, ora pelo culto de
esteticismo, ora por um apego a certo formalismo da língua, ora pela rejeição das
liberdades democráticas e um profundo ceticismo a respeito do humanismo. Pareceme
que esse ostracismo é estéril e que convém abordar nossa época de maneira bem
diferente. Trata-se de ‘escolher sua herança’, segundo seus próprios termos: nem
aceitar tudo, nem fazer tábula rasa.” (Derrida & Roudinesco, 2004, p.9)iii
Retomo as palavras Elisabeth Roudinesco, porque é trata-se de reconhecer nossas
heranças e não apenas evocar nomes ou repetir fragmentos interessantes para justificar o
construto teórico. Então, em relação aos estudos do discurso quais são nossas heranças?
Pode-se aqui estabelecer algumas articulações, confrontos e alianças presentes em alguns
conceitos centrais que sustentam as teorias do discurso, sem, no entanto, ter como objetivo
forçar aproximações ou converter uma teoria em outra, mas, observar alguns conceitos para
avaliar se é possível, -ainda que eu não considere evidente - abordar Bakhtin, Foucault e
Pêcheux em um mesmo construto teórico. Para tal recorro aos conceitos de
enunciado/discurso e ideologia.
3. Enunciado / Discurso
A centralidade da noção de discurso, que parece congregar esses autores, não se
apresenta separada da noção de enunciado/ enunciação. Daí, já vêm os primeiros conflitos
de designação; observa-se, de certa forma, que os conceitos de enunciado e discurso
aparecem imbricados. Vejamos como os autores estudados apresentam esses conceitos:
a)Bakhtin ao definir enunciado concreto poderia, segundo Brait (2005, p.67), ter esse
“conceito substituído ou fundido na idéia de palavra, e texto, e discurso”
“[enunciado concreto é] como um todo significativo [que] compreende duas partes:
(1) a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida [...] A
característica distintiva dos enunciados concretos consiste precisamente no fato de
que eles estabelecem uma miríade de conexões com o contexto extraverbal da vida,
e, uma vez separados deste contexto, perdem quase toda a sua significação – uma
pessoa ignorante do contexto pragmático imediato não compreenderá estes
enunciados.” (Bakhtin apud Brait, 2005, p.67)
Para Bakhtin, a noção de enunciado pode abarcar a de discurso, sendo que o
principal é que no enunciado está presente além da materialidade lingüística, também a
‘parte presumida’ que se refere não só ao contexto pragmático imediato, mas também a
uma ‘miríade de conexões como o contexto extraverbal’.l
b) Foucault apresenta o conceito de enunciado, associando-o ao de função enunciativa e
discurso:
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“Em seu modo ser singular (nem inteiramente lingüístico, nem exclusivamente
material) o enunciado é indispensável para que se possa dizer se há ou não frase,
proposição, ato de linguagem (...) ele não é, em si mesmo, uma unidade, mas sim
uma função que cruza um domínio de estruturas e unidades possíveis e que faz com
que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.” (Foucault,1986, p.
98-99)
Definição que se completa com a afirmação seguinte:
“Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem
na mesma formação discursiva; ele é constituído de um número limitado de
enunciados, para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência;
(...)” (Foucault,1986, p. 135-136)
O conceito de discurso, compreendendo um conjunto de enunciados que ocorrem
como performances verbais em função enunciativa, é apresentado considerando a idéia de
práticas (discursivas). Assim, amparado por esse modo de analisar os enunciados,
considerando-os instáveis, reconhece-os como objeto de luta, regulados por uma ordem do
dizível, definida no interior de lutas políticas.
c) As reflexões do 1º e 2º momentos de Pêcheux remetem-nos a uma definição de discurso,
já intensamente repetida como“efeito de sentido entre interlocutores”(Pêcheux, 1969) mas
tal concepção recebe novas incorporações na década de 80, especialmente, em Discurso:
estrutura ou acontecimento, quando Pêcheux adota a perspectiva de que o discurso é da
ordem da estrutura e do acontecimento:
“Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito
miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele
irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo discurso marca a
possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo
discurso é um índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de
identificação (...)” (Pêcheux, 1990a, p. 56).
Ao resgatar esses fragmentos pretendo mostrar que, consideradas como um
conjunto, as noções de enunciado e discurso apresentam-se em relação de aliança entre
esses três estudiosos, mesmo considerando que cada um debruçou-se sobre tais conceitos
traçando-os para atingir objetivos distintos, e, ainda para Bakhtin em momento diferente.
Bakhtin tem como norte apontar para a interação verbal, em seus níveis mais amplos,
opondo-se a um modelo comunicacional, além de avançar em seu tempo ao posicionar-se
contra um modelo que desconsidere o acontecimento. Foucault, na busca de compreender a
arquegenealogia, e a forma como se constroem as relações históricas entre os saberes e os
poderes em temáticas variadas (a loucura, o sistema prisional , a sexualidade), atua na
análise de discursos em campo vasto. M. Pêcheux pauta-se na unidade discurso para propor
modos de leitura, sobretudo do discurso político, com vistas à militância da esquerda
comunista. Para esses autores, o discurso mostra-se central e, embora, apresentem a noção
de discurso imbricada à de enunciado (enunciado concreto, função enunciativa), não
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limitam tal noção à situação imediata de enunciação, e sim consideram as condições de
emergência desses enunciados.
Na atualidade, adotar a unidade discurso como objeto de estudo é compreender a
amplitude do domínio da linguagem. É compreender o jogo interacional e ideológico no
qual as manifestações lingüísticas ocorrem, bem como as regulações de poder e saber às
quais estão submetidas.
Assim, observando esse quadro de aproximações desses teóricos, é possível
considerar, certa homogeneidade teórica, porém destaco as seguintes ressalvas: (i) Bakhtin,
ao inserir a noção de enunciado concreto, está preocupado com o ingresso das questões
socioideológicas na linguagem; (ii) Pêcheux, ao considerar que as condições de produção
distinguem o texto do discurso insiste em uma forma de não atribuir apenas como
acréscimo as questões de caráter sociologista / sociolingüístico; (iii) Foucault, considerando
o lingüístico como uma articulação entre o poder e o saber, insere o discurso no interior de
uma ‘ordem’.
4.Ideologia
A noção de ideologia é também um ponto de reflexão central para cada um desses
autores. Ela é abordada de forma ampla em Bakhtin, marcadamente em Marxismo e
Filosofia da Linguagem. Ele rompe com as idéias de ideologia como subjetiva,
interiorizada na consciência do homem, ou ainda como idealista contra a qual não é
possível se manifestar. Bakhtin insere a ideologia no âmbito da dialética, como um
processo a ser produzido no interior da estabilidade e instabilidade que geram o
acontecimento. Ainda que suas reflexões tenham na origem o postulado marxista, na qual a
ideologia é pautada na idéia de ‘falsa consciência’, Bakhtin amplia essa visão, colocando ao
lado da ideologia oficial a ideologia do cotidiano, considerando, portanto, a importância do
acontecimento. (Miotello, 2005)
Pêcheux, no primeiro momento de construção de sua teoria, finca amarras nas
revisões althusserianas sobre o marxismo, apresentando, então, a ideologia como aquela
que interpela o indivíduo em sujeito, concebendo assim, o sujeito coagido ao
assujeitamento. Na década de 80, momento de retificações de sua teoria, o autor produz
uma autocrítica (em especial no prefácio O estranho espelho da Análise do Discurso, que
introduz a tese de Courtine, 1981) e um deslocamento das posições althusserianas,
produzindo mudanças teórico–metodológicas ao rever o conceito de formação discursiva a
partir da releitura que Courtine faz da “A arqueologia do saber” e ao aproximar-se dos
estudos da heterogeneidade e alteridade.(Gregolin, 2004) Esses desvios teóricos que
atingiram a AD, produziram um caminho de reflexão que levou Pêcheux a considerar como
objeto de estudos não só os grandes textos, mas também “se pôr na escuta das circulações
cotidianas, tomadas no ordinário do sentido” (Pêcheux, 1990a: p.48). Assim, considero que
a concepção de ideologia, que sustenta os estudos pecheutianos, no que o próprio autor
denomina 3º momento, aproxima-se de Bakhtin no que tange à importância da noção de
acontecimento. Cabe destacar que há uma referência de Pêcheux (1990b) a Bakhtin em
Lecture et Mémoire: project de recherche (Leitura e Memória: projeto de pesquisa), projeto
apresentado por Pêcheux à ATP (‘produção, percepção, compreensão, compreensão da
linguagem falada e escrita’). Nesse projeto, Pêcheux apresenta um reencontro com a
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memória, considerando que os corpos sócio-históricos dos traços discursivos constituem o
espaço da memória, assimilando-o ao interdiscurso. Esse texto indica marcadamente a
aproximação de M. Pêcheux (1990b) e M. Bakhtin no que tange à importância da inscrição
das discursividades no acontecimento. A citação mencionada apresenta-se em nota de
rodapé e aqui a reproduzimos (tradução nossa):
* “A obra de Bakhtin constitui um dos exemplos mais acabados dessa tese,
colocando a inscrição das discursividades em um corpo de traços sócio-históricos:
“O caráter mais importante do enunciado, ou em todo caso o mais ignorado,
escreve Todorov na sua apresentação dos trabalhos de M. Bakhtin, é seu
dialogismo, isto é a dimensão intertextual ... A cultura é composta de discursos que
retêm a memória coletiva (os lugares comuns e os estereótipos como palavras
excepcionais), discursos em relação aos quais cada sujeito é obrigado a se situar”.
(T.Todorov. M Bakhtine, le principe dialogique, suivi de Écrits du cercle de Bakhtine, Seuil, 1981) »
Foucault, por sua vez, evita o termo ideologia, considerando que faz menção a tal ao
definir formação discursiva:
“No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por
convenção que se trata de uma formação discursiva –evitando, assim, palavras
demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás para
designar semelhante dispersão, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou
“domínio de objetividade”.” (Foucault, 1986, p.43)
Afastando o termo ideologia, Foucault traz mais luzes para questões como a forma
histórica que considera a constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objetos.
Trata, assim, do “sujeito como um objeto historicamente constituído sobre a base de
determinações que lhe são exteriores” (Revel, 2005, p.84) Para Foucault, o sujeito se
constitui por práticas –que podem ser de poder ou de saber – ou por técnicas de si.
Entretanto, a questão da ideologia deixa rastros de polêmica, sobretudo quanto à
filiação althusseriana, base primeira de Pêcheux e Foucault. As primeiras discordâncias
com o marxismo e o estruturalismo surgem em “As palavras e as coisas” e após várias
provocações e divergências entre Foucault e os marxistas (dentre eles Pêcheux) que o
acusavam de praticar um “marxismo paralelo”. Um rompimento se agrava com as reflexões
da analítica do poder e o abandono do materialismo histórico. Para Pêcheux, as distinções
entre o seu pensamento e o de Foucault reside no fato deste último manter um discurso
paralelo ao materialismo histórico, deixando, portanto, ausente a categoria marxista de
contradição na luta de classes (cf.Gregolin, 2004). Tal oposição vem a ser amenizada
quando, na década de 80, Pêcheux aproxima-se das reflexões dos historiadores da Nova
História e da psicanálise (conceitos de alteridade e heterogeneidade)
5. O remanso da análise discursiva para onde vertem e onde se encontram
perspectivas diversas: a noção de acontecimento.
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Emprego o termo remanso – que designa o trecho em que o rio se alarga,
diminuindo o ímpeto da correnteza – para representar o ponto de encontro das teorias
sustentadas por Bakhtin, Pêcheux e Foucault. Esses autores formulam seus conceitos para
atingir objetivos distintos, entretanto, têm em comum a oposição à concepção estruturalista
que aparta da análise o sujeito e a história.
A noção de acontecimento toma, nessa perspectiva, posição central. Defendo,
portanto, que os trabalhos situados na AD, que evocam a confluência desses autores,
possam explorar com mais acuidade esse conceito, que considero extremamente produtivo.
Pêcheux, ao evocar Bakhtin, expõe a contribuição da obra de bakhtiniana como um
exemplo da recuperação da memória como corpo de traços sócio-históricos nos quais se
inscrevem as discursividades. O conjunto de obras de M. Pêcheux, da década de 80,
buscará reconhecer no interior do acontecimento as ideologias que aí perpassam.
Foucault, irá postular a centralidade do acontecimento ao considerar que um
enunciado é sempre um acontecimento, na medida em que sua análise não pode ser
reduzida à língua, ao sentido e ao referente. Foucault (1986) insiste que, para análise, é
preciso restituir ao enunciado sua singularidade do acontecimento, tratar o enunciado em
sua irrupção histórica, e , portanto, oposto à idéia de estrutura. Nessa perspectiva a noção
de acontecimento amplia-se, na análise do discurso permitindo que o movimento social seja
tomado como acontecimento, considerada sua relação com o passado, a memória e a
história. Foucault e Pêcheux (ao analisar o enunciado ‘on a gagné) reconhecem o discurso
como uma série de acontecimentos que pertencem a diferentes redes e níveis.Ampliando
ainda mais esse conceito, Foucault apresenta a definição de ‘acontecimentalização’:
“Procuro trabalhar no sentido de uma “acontecimentalização”. Se o acontecimento
foi, durante um tempo, uma categoria pouco avaliada dos historiadores, perguntome
se, compreendida de uma certa maneira, a “acontecimentalização” não é um
procedimento de análise útil. O que se deve entender por “acontecimentalização”?
Uma ruptura absolutamente evidente, em primeiro lugar. Ali onde se estaria
bastante tentado a se referir a uma constante histórica, ou a um traço antropológico
imediato, ou ainda a um evidência se impondo de uma mesma maneira para todos,
trata-se de fazer surgir uma “singularidade”. Mostrar que não era “tão necessário
assim”; não era tão evidente que os loucos fossem reconhecidos como doentes
mentais; não era tão evidente que a única coisa a fazer com um delinqüente fosse
interná-lo; não era tão evidente que as causas da doença devessem ser buscadas no
exame individual do corpo etc. Ruptura das evidências, essas evidências sobre as
quais se apóiam nosso saber, nossos consentimentos, nossas práticas. Tal é a
primeira função teórico-política do que chamaria “acontecimentalização”.”
(Foucault, 2003, p.339)
Assim, considero que a noção de acontecimento é central para Bakhtin que aponta
como imprescindível observar a ideologia do cotidiano. Também o é para Pêcheux, visto
que se apresenta como a definição para a qual abrem-se as problematizações na década de
80. Para Foucault trata-se de definição em destaque em várias de suas obras, nas quais
desenvolve o conceito, oferecendo-nos reflexões sobre acontecimento/
acontecimentalização, ampliando, portanto, a produtividade de tal termo.
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Se, de fato, como nos exige E. Roudinesco, é nosso dever escolher nossas heranças,
fico com essas que aqui foram apontadas, sem tomá-las na homogeneidade, ou forçá-las a
uma identidade, mas compreendendo em que pontos se tocam e que caminhos nos sugerem,
já que é também nosso dever incrementar nossas heranças.
NOTAS
i Este artigo foi elaborado a partir da apresentação da mesa-redonda Bakhtin, Pêcheux e
Foucault: é preciso escolher nossas heranças composta pelos prof. Dr Roberto Baronas,
prof. Dr. Valdemir Miotello, profa Dra Maria do Rosário V. Gregolin e por mim como
debatedora.
ii“ As palavras e as coisas consagram a fase mais estruturalista de Foucault, a da ciência
dos sistemas de signos onde, por trás do descritivo da sucessão das diversas epistemes
desde a idade clássica, ele procura o impensado de cada uma dessas etapas da cultura
ocidental, sua modalidade da ordem, seu priori histórico. À maneira como Lévi-Strauss
percebe o impensado das prática sociais nas sociedades primitivas, Foucault decifra o
impensado da base constitutiva do saber ocidental, prolongando assim o esforço kantiano
para nos sacudir do nosso sono antropológico” (Dosse, 1993, p. 377)
iii Resposta de Derrida (p.12): “É verdade que sempre me reconheci, quer se trate da vida,
do trabalho do pensamento, na figura do herdeiro (...) é preciso primeiro saber e saber
reafirmar o que vem “antes de nós”, e que portanto recebemos antes mesmo de escolhê-lo
(...) Não apenas aceitar essa herança, mas relançá-la de outra maneira e mantê-la viva.
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REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. Trad. Maria do Rosário Gregolin et
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