quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Qual Lutero? A Partir De Onde?

Lucien Febvre
Un Destin: Martin Luter
Paris: Presses Universitaires de France
1945 (1927)


Sola Scriptura, Sola Fide: A Palavra (o espírito em oposição à letra) e a Fé a partir unicamente do indivíduo.


Epigrafe:

Um amigo lhe disse um dia que ele foi o libertador da cristandade. “Sim, respondeu ele, eu sou, eu o fui. Mas como um cavalo cego que não soube para onde seu mestre o conduzia.” – Mathesius, VII.
Prefácio da Primeira Edição (1927):

“Uma biografia de Lutero? Não. Um julgamento sobre Lutero, nada mais.
Desenhar a curva de um destino que foi simples, mas trágico; recuperar com precisão quaisquer pontos verdadeiramente importantes pelos quais ele passou; mostrar como, sob a pressão de quais circunstâncias, seu élan primeiro teve que se enfraquecer e causar a inflexão de seu traçado primitivo; colocar, portanto, a propósito de um homem de uma singular vitalidade, este problema das relações do individuo e da coletividade, da iniciativa pessoal e da necessidade social que é, talvez, o problema capital da história: tal foi nossa intenção.
Tentar, também em poucas páginas, de o realizar: isso era consentir logo de começo a enormes sacrifícios. Haveria qualquer injustiça suficiente a nos repreender. E nós não gostaríamos menos de nos surpreender se, forçados a escolher, nós nos sacrificamos deliberadamente ao estudo do Lutero maduro [épanoui] que, de 1517 a 1525 tem sobre a cena do mundo, com tanto vigor, seu papel heróico de profeta inspirado, do que o Lutero hipotético dos anos de juventude, ou o Lutero esgotado, vazio, desiludido que vai se esvaecendo de 1525 até 1546.
Deveremos acrescentar que ao escrever este livro, nós tivemos apenas um único compromisso: compreender, e na medida em que nós o poderíamos, fazer compreender? Melhor seria dizer como nós ficaríamos satisfeitos, simplesmente, se, neste trabalho de vulgarização, de reflexão também, os exegetas qualificados do pensamento luterano reconhecessem ao menos um cuidado constante: aquele de não empobrecer ao excesso, através de simplificações por demais brutais, a riqueza nuançada de uma obra que foi não tanto melódica, mas, como a moda de seu tempo, polifônica.”

Prefácio da Segunda Edição (1945):
“Eu falei, a partir do que eu tenho de melhor, sobre o jovem Lutero, e sua força, e sua fuga, e tudo aquilo que ele trouxe de novo ao mundo sendo ele mesmo [lui]. Obstinadamente ele mesmo. Nada mais que ele mesmo. Tudo aquilo que ele trouxe? Uma nova forma de pensar, de sentir e de praticar o Cristianismo. Que, não tendo sido esmagado no ovo, nem endossado tal qual, nem digerido amigavelmente pelos chefes da Igreja, vem a ser, a partir deste chefe, e naturalmente, uma religião nova, um ramo novo do velho cristianismo. E vem a ser o gerador, senão de uma nova raça de homens, ao menos de uma nova variedade da espécie cristã: a variedade luterana. Menos resolvido sem dúvida em sua aparência exterior, menos abrupto, menos dado a se repartir longe dos lugares de origem que esta outra variedade vivaz e prolífica, que com trinta anos de distância engendrou da Picardia João Calvino? Certamente. Mas entretanto foi tenaz. Durável. Susceptível de se dobrar em eventos diversos. Capaz de atração, ao ponto de adulterar talvez, ao que parece, a variedade vizinha e de inspirar crenças nos guardiões enciumados de sua pureza. De importância histórica considerável, em todo caso, que vem do fato que ele povoa notadamente uma parte da Alemanha. E que o espírito luterano adere fortemente na mentalidade dos povos que o adotam.
Que haja lugar para se estudar o Lutero pós 1525 como o Lutero de antes: não restam dúvidas. Que entre estes dois Luteros, não haja aliás nenhuma cisão verdadeira - melhor, que não tenha havido dois Luteros, mas um só; que o Lutero de 1547 seja sempre, em sua fé, o Lutero de 1520 – estamos de acordo. Eu nunca quis dizer nem nunca disse o contrário. Eu freqüentemente defendi a tese, paradoxal aos olhos de muitos, que o Lutero da guerra paisana, o Lutero condenando com tanta paixão, veemência, crueldade os paisanos revoltosos, não era um outro Lutero que o Lutero de 1520, aquele que escreveu os grandes tratados liberais – eu freqüentemente tentei estabelecer, contra tantas tentativas contrárias e motivadas, a unidade profunda e durável das tendências luteranas através dos eventos os mais desconcertantes – que se torna inútil, sem duvida, que eu me desculpe por uma falta que eu não cometi nem de fato nem em intenção. Vinco não significa rompimento [Repli ne signifie pás coupure]. O ser que, batendo seus tentáculos de todas as partes sobre o mundo hostil, adentra o mais que pode dentro de sua concha para se conferir ai um sentimento de paz interior e de liberdade bem-feitora – este ser não se divide em dois. Quando ele sai de novo, é ele, sempre ele que recomeça a tatear pelo mundo eriçado; e inversamente. – Somente, quem gostaria de compreender num Lutero este jogo alternado de saídas e reentradas, de explorações e de retiradas – não é em 1525, em 1530 que ele deve ser colocado saindo. É muito antes. É no ponto de origem. Situar este ponto, com precisão, na vida de Lutero; seguir os primeiros desenvolvimentos dos germes de “luterismo” [“luthérisme”] que um exame atento permite de revelar, desde antes quando Lutero não tinha ainda se tornado Lutero; ver nascer, crescer e se afirmar o Lutero no Lutero – e depois, a afirmação tendo sido feita e meditada, parar; colocar em confronto o homem com os homens, a doutrina com as doutrinas, o espírito com os espíritos que lhe era necessário ou combater, ou juntar-se (e não se juntam jamais os espíritos, não se ganham jamais os homens, não se substitui jamais uma doutrina por outra, sem deixar fatalmente um outro espírito invadir nosso espírito, um outro homem penetrar nossa humanidade, outras doutrinas abocanharem nossa doutrina). – Eis o que eu quis fazer. Eis o prefácio necessário, indispensável à todo estudo do Lutero posterior à 1525. Um tal estudo não pode ser suficiente em si mesmo; Falta-lhe, em prefácio, o conhecimento sólido do Lutero anterior à 1525 – e ele não esclarece, não permite, retrospectivamente, compreender, explicar, fazer compreender este Lutero. Ao contrário, um estudo do Lutero anterior à 1525 – ele da conta de todo Lutero. Foi disto que, Franceses, nós carecíamos em 1927. É disto ainda que nós temos necessidade em 1944.”
Capítulo II: Revisão da Literatura Precedente:

“E como Lutero, desde o começo, entrelaçou a história de suas crises àquela de seu pensamento, procuremos compreender o que um tal amálgama representava para ele.
Sobre esse ponto delicado, Denifle não vacila menos, nós o sabemos a partir do resto. Remorsos, pensamentos malvados, desejos clandestinos: eis todo o caso. Lutero vivia, no fundo de si, com sua carne em perpétua revolta contra seu espírito. Entendam, sem equívoco, sua luxuria. Concupiscentia carnis, a obsessão sexual.
Admiremos, aqui também. Estas pessoas, quero dizer, Denifle e seus tenentes, sabem seguramente com qual violência os desejos impuros não cessaram de incomodar um ser que não fez nada a ninguém. Vêem bem a penetração? Quanto aos campeões patenteados da inocência luterana, admiremo-los igualmente: com uma tal auto-confiança, não proclamam eles a pureza, a candura dos pensamentos de um ser que os mantém em segredo como a maioria dos seres: os outros, que se confessam, teriam eles que os crer cegamente? – Não nos concedamos em todo caso, o ridículo de querer recorrer ao primeiro nem ao segundo partido. Nós não sabemos. Nós não temos nenhum meio de descender, retrospectivamente, aos vincos íntimos da alma luterana. Firmes sobre o domínio dos fatos e dos textos, nos limitemos simplesmente a constatar duas coisas.
Uma, patente: ninguém jamais acusou Lutero de ter vivido mal durante seus anos de convento, quero dizer, de ter quebrado seu voto de castidade. A outra não é menos patente para quem examina os textos sem tomar partido: Denifle restringe, de forma abusiva, o sentido desta noção de Concupiscentia Carnis que foi tão usada por Lutero.”

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