sábado, 27 de outubro de 2007

Tuhami e Crapanzano


Vincent Crapanzano, Tuhami – Portrait of a Moroccan, Chicago: University of Chicago Press, 1980.

História de vida e etnografia. São esses os dois temas abordados por Crapanzano em seu retrato de Tuhami, um marroquino que trabalha na fabricação de tijolos, mora num pequeno cômodo próximo à olaria, é casado com um demônio/mulher (she-demon/ um demônio feminino?), com patas de camelo, chamada ‘A’isha Qandisha, com quem Tuhami mantém uma relação de submissão. Seu dia-a-dia consiste em romarias a santuários, nos quais ele – assim como outros romeiros, muçulmanos – costumam dormir, para sonhar – os sonhos são mensagens enviadas pelos santos que vivem nos seus túmulos.
O livro é a história de vida de Tuhami contada a partir de seu encontro com Crapanzano. O antropólogo foi para o Marrocos, na década de 1960, por conta de seu interesse por ‘A’isha Qandisha já que já havia estudado a Hamadsha, uma irmandade especializada em rituais de cura (baseados no transe e na auto-flagelação) para pessoas que tenham sido atacadas/possuídas por ela. Esse não é o caso de Tuhami: ele é um conhecedor da Hamadsha, mas não é membro dela; ele não é possuído pela, mas casado com ‘A’isha Qandisha. Por essa condição de outsider, Crapanzano se interessou por Tuhami.
Organização do livro
Descrito como um experimento, o livro está dividido em sete partes: uma introdução, um epílogo e cinco capítulos. Os capítulos um, três e cinco são compostos basicamente pelos diálogos das entrevistas feitas pelo antropólogo: suas perguntas e as respostas de Tuhami, repletas de sonhos e histórias que parecem contos de fadas narrados na forma de recitações/declamações.
No capítulo dois, Crapanzano analisa aquilo que seria a estrutura/armação (“framework”) da cultura marroquina: suas relações sociais, o significado da romaria, a relação entre humanos, santos e demônios e o “uso individual de símbolos culturais e rituais” (pág. xii). O capítulo quatro discute pesquisa de campo, a colaboração de um assistente de pesquisa e o encontro etnográfico com Tuhami. As principais referências teóricas são Sartre – principalmente uma biografia sobre Jean Genet intitulada “Saint Genet: Actor and Martir” (1964) -, Freud, Lacan e Simmel.
A abordagem de Crapanzano é fortemente psicanalítica. O autor propõe entender, a partir do que Tuhami lhe conta, como ele articula, através de símbolos, o seu mundo, e se situa nele: “I look at the way in which Tuhami makes use of the particular idiom at his disposal to articulate his own experience, including his personal history within our negotiations of reality. With less perspective perhaps, certainly with greater resistance, I look at the use I make of my own idiom within our negotiations”. (pág. xi e xii).
Negociação. O encontro etnográfico seria um processo de negociação e sua dinâmica precisa ser considerada/explicitada para que o texto etnográfico não resulte numa pintura estática e homogênea da “cultura de um povo” ou mesmo da história de uma pessoa.
Imaginação e realidade
Uma das questões negociadas entre Crapanzano e Tuhami é a própria noção de realidade e sua relação com a imaginação. O que fazer quando uma pessoa afirma ser casada com um demônio? Quando ela conversa com santos? Descreve suas alucinações e visões? Conta uma história fantástica sobre ter sido adotada por um pachá e ter vivido entre as mulheres de seu harém? Repete as mesmas histórias, sem que nenhuma versão seja igual a outra?
A história de vida de Tuhami foi escrita, por Crapanzano, a partir do que ele lhe contou. É por esse caminho – da ênfase naquilo que Tuhami lhe conta e não do que outros lhe contam sobre Tuhami – que o antropólogo aproxima a história de vida da autobiografia – trata-se de uma narração, uma perfomação passível de invenção. São histórias e mais histórias repetidas por Tuhami, numa temporalidade mítica, e que resistem à uma integração, à construção de um fio condutor. E essa dimensão inventiva é uma das mais evidentes em Tuhami: trata-se de um contador de histórias. São muitas as passagens em que Crapanzano afirma não saber se a história contada por Tuhami é real ou imaginada, se se trata de uma fantasia, um sonho ou de algo que “realmente” aconteceu. Durante as entrevistas, é comum Crapanzano perguntar por uma informação (um fato, uma pessoa do passado, num esforço de conferir uma certa congruência ao seu relato, buscando estabelecer uma cronologia para os acontecimentos) e Tuhami responder contando uma história ou um sonho. Além das versões completamente diferentes sobre um mesmo acontecimento, personagens que mudam de nome, ou que não se sabe se é um homem, uma mulher, um santo, um demônio...
Crapanzano discute, então, a necessidade de se considerar o modo como Tuhami estrutura/constrói sua narrativa, tanto no que diz respeito à sua armação interna quanto em relação ao encontro etnográfico, à situação posta pela entrevista. Essas duas dimensões precisam, ainda, ser consideradas em relação aos diferentes idiomas culturais de ambos – embora Crapanzano, nesse caso, enfatize mais a cultura marroquina. Afirma o autor: “The subject of Tuhami’s tale is ontologically different from the subject of those tales with which we in the West are familiar. Generic differences are not simply formal differences. They are cultural constructs and reflect those fundamental assumptions about the nature of reality, including the nature of the person and the nature of language, that are considered, if they are considered at all, self-evident by the members of any particular cultural tradition. The recognition of such differences, of the possibility of another more or less successful way of constituting reality, is always threatening; it may produce a sort of epistemological vertigo and demand a position of extreme cultural relativism (…). Wittingly or unwittingly, however, the anthropologist or his reader often causes the differences to disappear in the act of translation. Such translation may render bizarre, exotic or downright irrational what would have been ordinary in its own context. The ethnography comes to represent a sort of allegorical anti-world, similar to the anti-worlds of the insane and the child”. (pág. 08)
Diante disso, ao longo do livro, Crapanzano faz algumas advertências. Primeiro. Para se entender as narrativas de Tuhami, é necessário entender o estatuto que a palavra possui na cultura marroquina, marcada pela competição, e por relações de dominação e dependência (já que se trata, é bom lembrar, de uma sociedade pós-colonial): aquele que é tido como o pólo dominante, numa relação, é aquele que detém a palavra.
Além desse, um outro ponto. Os ocidentais tendem a contrapor imaginário e realidade, colocando essa última sob a rubrica da verdade: realidade e verdade seriam uma coisa só. Assim, Crapanzano assume, que, em boa parte das entrevistas, insistia para que Tuhami falasse sobre sua relação com seus pais, irmãos, avós, sobre sua relação com as mulheres, sobre seus patrões, pressupondo que eles fossem mais “reais” do que os santos, espíritos e demônios que também faziam parte das relações e da vida de Tuhami. Mas, para Tuhami (e para a cultura marroquina), não existe essa distinção. Nas histórias de Tuhami, tanto os santos e demônios quanto as pessoas (seres humanos) possuem o mesmo estatuto: são reais. E tanto uns quanto outros podem ser metafóricos e simbólicos. O interessante é que Crapanzano percebe isso somente no final, quando Tuhami, em suas recitações, começa a destacar acontecimentos envolvendo pessoas reais em situações que evocam, metaforicamente, aquilo que já havia sido contado anteriormente, em histórias cujos personagens eram fantásticos ou mágicos: num esforço para um entendimento comum, Tuhami começa a falar o idioma de Crapanzano.
Metáfora. Crapanzano analisa como os desejos (verdadeiros) de Tuhami expressam-se nas suas narrativas irreais (inventadas, fantásticas). Depois de perder a família e se ver completamente sozinho no mundo, são várias as histórias/versões de uma mesma história contadas por Tuhami nas quais ele é sempre salvo por alguém. Desejaria ele ser salvo por Crapanzano? Esse desejo, essa esperança vêm à tona na medida em que Crapanzano é o seu interlocutor, na situação posta pela entrevista e que – como Crapanzano enfatiza ao longo do livro – precisa sempre ser levada em consideração. Diz ele: “There was always something captivating about Tuhami’s discourse. It was as though he wanted to entrap me, to enslave me through the power of the word in a intricate web of fantasy and reality – to reverse, if you will, the colonial relationship that I as a foreigner, a nasrani, must have suggested to him. There was something seductive in his discourse, too. He did not in fact want me or anyone else. (…) What he wanted, I have come to believe, was rather the imaginary fulfillment of an emptiness, a lack, a manqué-à- être, to use Jacques Lacan (1966) phrase, that he suffered. I became, I imagine, an articulatory pivot about which he could spin out his fantasies in order to created himself as he desired. I was created to create him, to fill metaphorically the emptiness that his desire, in its perversity, desired. Tuhami wanted fulfillment through the metaphor without denying the essencially irreal quality of the metaphor. Anything more concrete would have been too dangerously real”. (pág.140)
História de vida e autobiografia
Logo na introdução, Crapanzano faz uma distinção entre o que ele chama de case history e biografia, de um lado; e história de vida e autobiografia, de outro. Os dois primeiros teriam em comum o fato de apresentarem a história de um determinado sujeito a partir de uma perspectiva externa, um olhar de quem está de fora, e que permitiria ao narrador o “luxo da objetividade” ao analisar e avaliar a vida de um determinado sujeito.
Por sua vez, a história de vida (assim como a autobiografia), apresentariam um sujeito a partir da sua própria perspectiva. A história de vida se distingue, ainda, da autobiografia, por se tratar de uma espécie de resposta imediata a uma demanda posta por um Outro e que carrega nela mesma certas expectativas em relação a esse Outro que o/a interpela.
Mas tanto a história de vida quanto a autobiografia, adverte Crapanzano, consistem numa auto-invenção (self-creation) que é feita, como já foi dito, pelo desejo de ser reconhecido pelo Outro (para o qual se está narrando). Como na pose para o retrato: o retratado não deixa, de certo modo, de encenar para o retratista. Diz Crapanzano: “Tuhami’s evocative play with his own personal history, with his life, may be seen as an extreme example of his attitude toward truth. His several confusing versions of what followed the death of his father, for example, are attempts, I believe, to establish, evocatively, through me, his interlocutor, his own identity, even his worth. Tuhami is in many respects the contemporary Morrocan in extremis. He is both unique and a stereotype”. (pág. 81)
Tuhami inventa mas existem limites postos à sua imaginação e à construção que ele mesmo faz de sua singularidade: limites postos pelo seu próprio idioma cultural. “His tales carries implicity, if not explicity, the Moroccan values, interpretional vectors, patterns of association, ontological presuppositions, spatiotemporal orientations, and etimological horizons that are embedded in his idiom (…) It reflects, for example, the traditional Moroccan social hierarchy, patterns of authority, and attitudes toward paternal and maternal figures, men and women, sexual relations, siblings, and masters and servants. In the permitted ‘blend’ of the imaginary and the real, in the infusion of desire into reality, it reflects conventional and generic constraints” (pág.07). Crapanzano parte da cultura marroquina para entender a narrativa de Tuhami - e não o contrário.
Etnografia
A história de vida como o resultado de um encontro etnográfico, de um encontro entre duas pessoas: o antropólogo interfere na vida que ele está biografando (e vice-versa), e o faz porque cria uma proximidade, uma relação afetiva com o biografado. Várias vezes Crapanzano fala da amizade entre ele e Tuhami.
Com a partida do campo se aproximando, Crapanzano começa a se preocupar com o futuro de Tuhami que, para ele, pertence a Alá: o destino está escrito. Tuhami, assim como outros marroquinos, tendem a atribuir os acontecimentos de sua vida à interferência dos santos e demônios, a uma dimensão transcendental que, segundo Crapanzano, transfere a responsabilidade para um Outro, livrando-o de qualquer sentimento de culpa ou de fracasso. Crapanzano descreve um incômodo em relação à essa inexorabilidade do destino e à postura resignada que Tuhami apresenta, por isso, em relação ao seu passado e seu futuro.
Tuhami se mostra bastante solitário, não tem família e quer se casar. Mas não consegue, porque não tem dinheiro suficiente para o dote da noiva ou para a festa de casamento. Racionaliza ainda, essa condição, atribuindo-a a uma interferência de Aisha Qandisha. Segundo Crapanzano, Tuhami constrói, nas suas recitações, uma “filosofia da resignação”. Crapanzano incomoda-se com ela e diz que aí existe um limite para o seu relativismo. Antes de ir embora, Crapanzano resolve aconselhá-lo.
A relação entre “antropólogo” e “informante”: trata-se do encontro entre duas pessoas, que criaram laços de amizade e afetividade entre si. Crapanzano propõe entender como Tuhami articula, nas suas narrativas, a sua experiência no mundo. Crapanzano quer entender o modo como Tuhami articula, na sua fala, sua própria experiência, como ele auto-reflete sobre sua vida. Uma dessas articulações/reflexões feitas por Tuhami é justamente a idéia do destino traçado, posto, escrito. Crapanzano não reluta em dizer que se incomoda com ela e faz questão de dizer isso a Tuhami. A resposta de Tuhami: mais uma história/metáfora para sua resignação.

Um comentário:

Skywalker disse...

Uma pena que eu tenha faltado à essa apresentação da Carol: realmente o texto parece ser muito interessante, e me faz pensar inicialmente, num primeiro contato através desse relato da leitura, em pelo menos duas questões, dois pontos essenciais, nos quais o signo da diferença e da alteridade se mostram são:

1) O lugar ocupado pelos conceitos de fantasia e de realidade é diferente do nosso, ocidental moderno, mas mesmo assim continua a haver uma distinção entre uma "fantasia" e uma "realidade", entendidos como duas coisas mais ou menos distintas, ainda que seus valores sejam diferentes dos nossos. Ou não?

2) Ponto fundamental de alteridade é o framework (estrutura/armação) da história de vida/autobiografia. A unidade desse framework seria dada, entre outras coisas, pelo destino inelutável, definido de antemão. Do ponto de vista ocidental, não haveria uma contradição entre esse destino fechado e o fato de Tuhami usar o seu "poder narrativo" como forma de criar um novo destino para si mesmo? Não seria então a história de vida de Tuhami duplamente determinada, de um lado pelo que lhe acontece (ai incluídos seus sonhos, as mensagens dos santos, etc), coisa que ele não pode mudar, e de outro pelo que ele faz a partir daquilo que lhe acontece, que dependeria de sua própria capacidade de decidir, ainda que aparentemente, do que eu pude entender, Tuhami tenda a negar esse aspecto por ser marcado pelo signo daquele que é o seu outro (o ocidental colonizador/antropólogo)? Esse aspecto não estaria determinando a sua narrativa?